Pela primeira vez na minha vida conversei com pessoas escravizadas. Sim, pessoas que viraram escravas, quando eram crianças junto com adultos, na ditadura de Pol Pot no Camboja e que atualmente têm seus 40 e poucos anos (e não uso a expressão ex-escravos pois os traumas e tudo de mais bizarro que essas pessoas viveram nunca vão sair das suas mentes). Não falo sobre trabalho infantil, ou sobre pessoas que trabalham horas a fio em semi-escravidão, mas sobre tortura, fome, morte.
Recentemente no Camboja (falamos do período entre 1975 a 79) 20% da população (cerca de 2 milhões de pessoas foram mortas) pelo khmer vermelho do ditador Pol Pot.
Na época todas as principais cidades do país foram evacuadas. A ideia do governo era criar uma sociedade comunista puramente agrária. Cidades, que hoje em dia contam com milhões de habitantes, ficaram vazias e todos foram ao interior obrigadas a servir ao governo, escravizadas. Centenas de milhares de pessoas também morreram por doenças curáveis, já que não existiam médicos disponíveis para tratar.
Se você tem estômago frágil, sugiro não continuar a ler esse texto.
A primeira pessoa que conversei, que atualmente é casado, pai de 3 filhos, com inglês fluente e bom emprego, foi escravizada quando tinha 6 anos de idade (nesse momento da conversa lembrei: é a idade da minha filha). Ele teve que trabalhar como escravo em um canavial. E lá viu muitos serem mortos por terem as mãos lisas (que indicava que não estariam trabalhando de maneira adequada. Seu pai já tinha como profissão a lavoura e suas mãos já eram bastante calejadas. Graças a isso o pai sobreviveu.) ou usarem óculos, ou médicos, professores, até mesmo monges budistas, (pois seriam intelectuais e não serviriam para esse tipo de serviço braçal). Foram centenas de milhares de CRIANÇAS não apenas escravizadas como doutrinadas a esquecerem família e qualquer valor que tivessem para delatar e matar qualquer tipo de “subversivo” não apenas os que seriam contra o regime
Aí entra a parte da alimentação: Nas lavouras, o menino não tinha o que comer e qualquer vestígio de ser vivo era considerada uma iguaria: lagartixas, insetos ou mesmo correr risco de ser descoberto ao fazer uma incisão em um boi vivo para tentar beber seu sangue, como vampiros. Não lhes davam carne para comer e caso tentassem cultivar alguma planta, essa era destruída e o infrator assassinado). Ele explicou que seria esse o motivo de ele degustar na minha frente, com tanto prazer nos olhos, um ovo com embrião de um pintinho vendido no meio da rua, sem vestígios de higiene. Seria um verdadeiro banquete nesse período do seu passado.
O outro escravizado quando criança que conversei (também com inglês fluente, família e bom emprego atualmente) não teve a mesma “sorte” em seu passado. Seus pais, irmãos e diversos parentes foram assassinados e até hoje ele carrega o peso de nunca ter encontrado os corpos. Durante 2 anos foi doutrinado pelo governo para esquecer família, pai e mãe e delatar os que cometesse mínimas infrações como não ter as mãos calejadas. E matar pelo Estado. Acabou sendo escravizado na S21, prisão dos Campos de concentração da época, onde precisava limpar as latrinas. E se não estivessem bem limpas ele era obrigado a corrigir o problema com sua língua. Sim, limpar a latrina com a língua. Que chega a ser uma tortura leve se comparada às diversas atrocidades cometidas no período, que não vou mencionar nesse texto.
Essas duas pessoas me explicaram que depois que se prova tais ingredientes como se fossem iguarias devido à fome, mesmo depois do período da ditadura (principalmente considerando a miséria que o país se encontrava e se encontra até hoje), não passam a ter qualquer tipo de restrição ou exigência alimentar. Muito menos com higiene.
Se falarmos de Vietnam, cuja guerra durou cerca de 40 anos, conversei também com outra pessoa de lá, cujo pai serviu no exército. Ele citou o período em que o país viu-se obrigado pelo governo a trocar toda a sua produção de lavouras de arroz pelas de algodão para poder vestir soldados). Um período em que milhares de pessoas morreram de fome e começaram a comer tudo que viam pela frente, inclusive seus cachorros para poderem sobreviver. Aí sorrindo, ele também comentou que depois de provar o alimento, principalmente estando faminta, a pessoa acaba gostando e levando o hábito adiante mesmo após a guerra, em um país que até hoje ainda está em reconstrução e extrema miséria (um aposentado que participou do conflito no país atualmente recebe 14 dólares do governo).
Se falarmos de China (guerra civil de 27 a 45 com cerca de 8 milhões de mortos; guerra sino-japonesa) , e outros países nos arredores, a fome também foi na mesma proporção.
Quando falamos sobre mudar a cadeia alimentar desses países, como se fosse apenas mudar hábito de pessoas que possuem gostos e costumes exóticos, estamos falando sobre muitos que até hoje não vivem: sobrevivem. Vai muito além de apreciar e de degustar sabores, que dirá de higiene. Algo que não se apaga nessa vida, e que acaba passando por gerações.
Como uma pessoa que passou por tanto sofrimento pode reeducar um trauma alimentar se foi forçado a se deleitar com tais alimentos bizarros, sendo que até hoje não possui as mínimas condições para sobreviver? Como é que uma pessoa, que desde criança acompanhou tamanho pouco caso com a vida humana, pode vir a respeitar o bem estar de um animal e condições adequadas de higiene se nunca houve amparo para isso?
Vai muito, muito além de apenas uma reeducação alimentar. E por isso, ao final da viagem ao me deparar com algumas barracas vendendo insetos na rua mais turística de Bangkok na Tailândia (afinal no Camboja e Vietnam que passaram recentemente por tais situações não encontrei nenhum inseto, apesar de ter procurado muito), me dei ao luxo de fugir da atração voltada apenas para os turistasque passa a imagem de algum tipo de deleite gastronômico local.
Essa semana me vi num aeroporto asiático (felizmente a China não estava em meu roteiro considerando os riscos com a versão atual do Corona), em meio a funcionários, tripulantes e 80% dos passageiros protegidos por máscaras. Refleti mais uma vez sobre a tal “necessidade” de reeducação alimentar desses países. Há muita “reeducação” a ser feita antes disso.
Por outro lado, muita coisa está mudando nesses países e a perspectiva de desenvolvimento para o futuro é muito otimista. Visitei uma escola no interior do Camboja (administrada por um senhor que quando menino perdeu toda família na guerra). As crianças de 6 anos estudam inglês aos sábados e querem ser médicos, advogados, engenheiros quando crescerem. O Vietnã tem sido uma das economias com maior perspectiva de crescimento no mundo, e apesar da grande miséria que ainda existe, as expectativas para o futuro são muito boas. E consequentemente a tal “reeducação alimentar” também vai gradualmente acontecendo. Esperamos que a tempo de conter mais mutações de Corona vírus.